Introdução
A
incontinência urinária tem alta incidência na população
feminina, principalmente em multíparas e após a quinta
década. No contexto social de nossos dias, com expectativa
de vida mais longa e a participação crescente da mulher
em atividades profissionais, uma parcela significativa
dessas mulheres passa a ter limitações importantes,
em conseqüência da incontinência, no desempenho profissional,
nos relacionamentos sociais, familiares e na vida
conjugal. A isto somam-se as dificuldades higiênicas,
seguidas do comprometimento da auto estima e da qualidade
de vida.
Não mais se admite aceitar a situação passivamente
e com ela conviver resignada, às custas de soluções
paliativas como absorventes ou fraldas. É importante
frisar que todos os tipos de incontinência, em qualquer
faixa etária, são passíveis de tratamento que traga,
ao menos, alguma melhora da condição.
O enfoque atual é de esmerar-se no diagnóstico, procurando
identificar os possíveis mecanismos envolvidos em
cada caso. Para esse fim, dispõe-se de sofisticados
recursos técnicos, como avaliação urodinâmica e ultra-sonografia,
que fornecem valiosos subsídios, considerados indispensáveis,
principalmente quando se propõe tratamento cirúrgico.
Não se abre mão, entretanto, de boa avaliação clínica.
Definido o diagnóstico, a etapa seguinte será escolher,
entre as diversas opções terapêuticas, a mais adequada
para cada caso. Nesse texto expomos os tipos de incontinência,
como investigar e os recursos terapêuticos disponíveis.
Tipo
de Incontinência Urinária Feminina
A
perda involuntária de urina pode ocorrer por
diversas causas, sendo fundamental, para o sucesso
do tratamento, a identificação do processo
que está levando à incontinência.
A
fim de facilitar o entendimento dos vários
mecanismos de incontinência usam-se classificações
que procuram individualizar os casos. Apresentaremos,
a seguir, as classificações mais simples
e práticas, e mais comumente adotadas.
Stanton propõe a seguinte classificação:
Uretral |
- Incompetência
do esfíncter
- Instabilidade
do detrusor
- Transbordamento
- bexiga neurogênica
- Congênita
- Miscelânea
- Funcional
ou psicogência
|
Extra-uretral |
|
|
As
incontinências podem ser uretrais ou extra-uretrais,
na dependência da perda de urina se dar pela
uretra (via natural) ou por outra via ou órgão,
respectivamente.
A
incontinência por incompetência do
esfíncter compreende o tipo mais freqüente
em uroginecologia, também conhecida por incontinência
urinária de esforço (IUE), incontinência
genuína ou verdadeira. É definida
pela International Continence Society - comitê
de padronização como "toda perda
de urina pelo meato externo da uretra, quando a
pressão intravesical excede a pressão
máxima de fechamento uretral, na ausência
de contração do músculo detrusor".
O termo incompetência do esfíncter
refere-se, portanto, à falta de habilidade
do mecanismo esfincteriano da uretra em oferecer
resistência à saída de urina
quando há aumento súbito da pressão
intra-abdominal, como ocorre ao tossir, espirrar,
andar, etc.
A
incontinência urinária de esforço
é subdividida, na classificação
de Blaivas e Olsson em cinco tipos, levando em conta
critérios clínicos e videourodinâmicos:
-
Tipo
0 - há hipermobilidade da uretra com
os esforços, mas não é possível
observar a perda de urina;
-
Tipo
I - o colo vesical se mantém fechado
e situado acima da borda inferior da sínfise
púbica. Abre-se, aos esforços, mas
sua descida é menor que 2 cm em relação
a posição de repouso. Observa-se
perda de urina durante o esforço;
-
Tipo
IIa - semelhante ao tipo I, porém com
descida maior que 2 cm durante o esforço,
abaixo da borda inferior da sínfise púbica;
-
Tipo
IIb - O colo vesical é infrapúbico
mesmo em repouso, embora mantenha-se fechado.
Durante o esforço pode ou não descer,
mas a uretra proximal se abre;
-
Tipo
III - colo vesical e uretra proximal estão
permanentemente abertos, mesmo em repouso. É
o grau mais acentuado de incontinência,
também conhecido por "Deficiência
Esfincteriana Intrínseca" (DEI),
uma vez que há completa falência
da função esfincteriana uretral,
independente da posição ou mobilidade
uretral. Nesses casos a perda de urina pode ocorrer
com tanta facilidade e constância que muitas
pacientes chegam a confundi-la com uma perda continuada,
fazendo suspeitar da presença de fístula.
É importante que este tipo de incontinência
seja bem identificado, pois admite-se que os melhores
resultados de seu tratamento sejam obtidos com
as cirurgias tipo "sling" ou "alças".
A
instabilidade do detrusor é a segunda
causa mais comum de perda involuntária de urina
em mulheres na pré-menopausa e, segundo alguns
autores, a mais freqüente em pacientes idosas.
É conseqüência de contrações
da musculatura da bexiga, que deveria manter-se relaxada
enquanto a bexiga se enche. São conhecidas
por contrações involuntárias
do detrusor ou contrações não
inibidas, que caracterizam as chamadas bexigas
hiperativas, e costumam provocar o sintoma de
urgência ou urge-incontinência, só
podendo ser diagnosticadas através de avaliação
urodinâmica. Segundo a etiologia são
idiopáticas (sem causa conhecida) ou causadas
por doenças neurológicas, quando recebem
a denominação de hiperreflexia do
detrusor.
A
incontinência por transbordamento ocorre
quando há arreflexia ou distensão crônica
da bexiga, conhecidas como bexigas neurogênicas,
sendo as causas mais comuns o diabetes e lesões
neurológicas. Nesses casos a bexiga tem grande
capacidade e a perda de urina ocorre quando a pressão
intravesical supera a pressão de fechamento
da uretra, deixando transbordar parte do excesso de
urina. É interessante que a perda pode ocorrer
em momentos de esforço e levar a confundir
com a incontinência urinária de esforço.
O
termo miscelânea refere-se aos casos,
que incluem divertículos de uretra, uso de
fármacos alfa-bloqueadores, infecções
urinárias, etc.
As
incontinências decorrentes de malformações
congênitas, tanto uretrais como extra-uretrais,
são pouco freqüentes em uroginecologia,
uma vez que tais casos costumam ser diagnosticados
e tratados ainda na infância por urologistas
e/ ou cirurgiões pediátricos.
Incontinência
psicogênica é a que ocorre em pacientes
com distúrbios psiquiátricos graves
ou em portadoras de lesões neurológicas
cerebrais, como paralisias ou demências. A paciente
perde a capacidade de escolher local e momento adequados
para urinar.
As
fístulas constituem um tipo especial
de incontinência, vez que a perda de urina se
dá por um local diferente da uretra, mais comumente
a vagina, e por um mecanismo claro, qual seja a existência
de comunicação anormal entre os órgãos
genitais e urinários. Outra particularidade
é que a perda, nesses casos, costuma ser contínua,
não havendo, praticamente, nenhum momento de
continência. As fístulas podem advir
de traumatismos (violência, partos, cirurgias),
processos infecciosos ou de tumores malignos.
Existem
muitas outras classificações para a
incontinência urinária. As aqui apresentadas
(Stanton e Blaivas) se complementam e englobam, de
maneira sucinta e prática, os casos que constituem
o dia a dia do uroginecologista. Por isso são
as mais adotadas, e nelas se baseiam os laudos das
nossas avaliações urodinâmicas.
Avaliação Clínica
Anamnese
Tem como ponto de partida a correta identificação
das queixas da paciente. O mais comum é que mais de
um sintoma esteja presente em cada caso, o que freqüentemente
confunde tanto a paciente quanto o médico.
Os sintomas urinários em pacientes incontinentes estão
relacionados à fase de enchimento vesical, sendo,
por isso, chamados de sintomas de armazenamento.
A anamnese deve pesquisar, ainda, associação de outras
doenças como pneumopatias obstrutivas, hipertensão
arterial e diabetes, assim como antecedentes cirúrgicos,
obstétricos e especial atenção a medicamentos que
a paciente possa estar usando para outras condições
clínicas, mas que tem ação no trato urinário inferior.
São exemplos, anti-hipertensivos como alfa-metildopa
e reserpina, neurolépticos, como clorpromazina e haloperidol
e benzodiazepínicos.
Exame Físico
Não se limita ao exame ginecológico, cabendo avaliação
neurológica sucinta com observação da marcha, inspeção
da prega interglútea, pesquisa dos reflexos patelar,
bulbocavernoso e perianal, assim como a força em membros
inferiores. A presença de alterações requer parecer
de neurologista. São cruciais o trofismo genital,
a presença de distopias e o tônus da musculatura do
assoalho pélvico. O toque bimanual identificará eventuais
massas pélvicas que possam estar contribuindo para
a incontinência e que precisam ser tratadas concomitantemente.
Procura-se demonstrar, objetivamente, a perda de urina
executando-se manobras que aumentem a pressão intra-abdominal,
como tossir ou Valsalva, com a paciente deitada ou
de pé.
A hipermobilidade uretral pode ser aferida pela inspeção
da parede vaginal anterior durante manobra de esforço,
ou através do teste do cotonete (Q-tip teste), que
mede o arco descrito por um swab introduzido na uretra,
até o colo vesical, durante manobra de esforço. Deslocamentos
superiores a 30 graus sugerem hipermobilidade.
Exames complementares
São indispensáveis o exame de sedimento urinário e
a urocultura. As infecções urinárias podem cursar
com sintomas irritativos como urgência e polaciúria,
que simulam incontinência, assim como desencadear
contrações involuntárias do detrusor; a função esfincteriana
uretral pode ser alterada pela ação de toxinas bacterianas.
Além disso, para a manipulação do trato urinário no
estudo urodinâmico, deve-se assegurar da ausência
de infecções.
A citologia oncótica urinária está indicada em pacientes
com mais de 50 anos, tabagistas, com hematúria ou
com sintomas irritativos para os quais não se encontra
justificativa ou não cedem com tratamento rotineiro.
Ultra-Sonografia
Tem
por objetivo avaliar a posição e a mobilidade do colo
vesical em relação a borda inferior da sínfise púbica,
no repouso e durante esforço. Apontam-se como vantagens
do método a rapidez do exame, baixo custo, ausência
de radiação e menor desconforto para a paciente. Dá-se
preferência à via transperineal, por não interferir
na mobilidade do colo vesical. Deslocamentos do colo
vesical superiores a 1 cm denotam hipermobilidade.
Alguns autores advogam que, eventualmente, contrações
involuntárias do detrusor, que caracterizam instabilidade
vesical, podem ser diagnosticadas pelas deformidades
que provocam no contorno vesical. Diâmetro da uretra
superior a 5 mm, no seu terço médio, é sugestivo de
deficiência esfincteriana intrínseca (DEI).
Uretrocistoscopia
Não é utilizada rotineiramente na investigação das
incontinências urinárias, tendo indicação
apenas, em situações especiais.
Além das indicações diagnósticas, a uretrocistoscopia
é tempo obrigatório na realização das cirurgias tipo
sling (tratamento cirúrgico), para verificação da
integridade das paredes vesicais após as passagens
das agulhas pelo espaço retropúbico.
Tratamento Clínico
Pode ser indicado como opção exclusiva ou como complementar
ao tratamento cirúrgico. É o método de escolha em
incontinências de esforço leves e em pacientes que
não desejam ou têm impedimento clínico para a cirurgia.
É recurso de eleição para tratamento das bexigas hiperativas.
Em quaisquer circunstâncias, a estrogenioterapia deve
ser empregada diante de atrofia genital, complementando
qualquer modalidade terapêutica. Para a incontinência
de esforço os recursos não cirúrgicos disponíveis
são:
- exercícios perineais;
- cones vaginais;
- eletroestimulação do assoalho pélvico;
- uso de fármacos.
Os exercícios perineais consistem em contrair e relaxar
a musculatura, durante 15 a 30 minutos, 2 a 3 vezes
ao dia.
O objetivo dos cones vaginais é provocar contratura
reflexa dos feixes musculares. São fornecidos conjuntos
de 5 a 9 cones de mesmo tamanho, mas com pesos que
variam de 20 a 100 gramas. A paciente deve reter o
cone de maior peso possível, em torno de 15 a 20 minutos,
duas vezes ao dia.
A eletroestimulação utiliza eletrodos introduzidos
na vagina, para estimular a atividade do assoalho
pélvico. Seus resultados são questionáveis na incontinência
de esforço.
Os fármacos com ação alfa-adrenérgica podem provocar
contração da musculatura lisa uretral, contribuindo
para aumentar a resistência do mecanismo esfincteriano
uretral. A imipramina, anti-depressivo tricíclico,
pode ser utilizado com esse objetivo.
Os fármacos disponíveis para tratamento da bexiga
hiperativa, mais empregados atualmente são:
- Oxibutinina
- Tolterodina
- Imipramina
Além dos recursos farmacológicos, a bexiga hiperativa
deve ser tratada com métodos fisioterápicos como:
- Biofeedback - por dispositivos especiais a paciente
recebe estímulos visuais ou sonoros e aprende a inibir,
conscientemente, contrações do detrusor.
- Eletroestimulação - o estímulo elétrico por eletrodos
vaginais tem-se mostrado eficiente para inibir contrações
involuntárias do detrusor.
- Reeducação vesical - aumento progressivo do intervalo
entre as micções. O ideal é que os intervalos sejam
anotados, 2 a 3 dias por semana, a fim de que se avaliem
os resultados .
Tratamento Cirúrgico
As incontinências urinárias de esforço são mais frequentemente
tratadas cirurgicamente. Diversas são as técnicas
disponíveis; todas, entretanto, têm 3 objetivos fundamentais:
- corrigir a hipermobilidade do colo vesical;
- restabelecer a função esfincteriana da uretra;
- reconstrução anatômica do assoalho pélvico com correção
de distopias associadas.
São essas as principais opções cirúrgicas:
- uretropexia vaginal
- colpossuspensões retropúbicas
- cirurgias tipo "sling" ou alças
- injeções periuretrais
A uretropexia vaginal, mais conhecida como operação
de Kelly-Kennedy, consiste na plicatura da fáscia
uretrovesical, objetivando elevação e sustentação
do colo vesical; normalmente é complementada com colpoperineorrafia
e miorrafia dos levantadores do ânus.
Durante muitos anos foi a primeira opção cirúrgica
e, conseqüentemente, a mais utilizada. Era norma bem
difundida indicar primeiro a operação de Kelly-Kennedy
e, em caso de fracasso, optar pela operação de Burch.
Esta postura está totalmente abandonada. Os índices
de cura relatados com a uretropexia vaginal, em seguimentos
de 1 ano ou mais, variam de 31% a 65 %. Esses resultados,
aliados ao fato de ser a primeira operação a que tem
mais chances de cura, têm tornado a uretropexia vaginal
uma opção de exceção. Tem indicação restrita a casos
de incontinências leves, em pacientes obesas ou com
outras limitações clínicas, ou ainda, com interesse
maior em correção de distopias. Assim mesmo, outras
técnicas podem ser empregadas em tais situações.
Entre as colpossuspensões retropúbicas temos utilizado,
exclusivamente, a técnica de Burch. É a primeira opção
em incontinências por hipermobilidade, apontada como
a mais eficiente em avaliações pós-operatórias de
longo prazo, com indiscutível superioridade sobre
a uretropexia vaginal. Os índices de cura estão em
torno de 85 %.
Para os casos de incontinência por deficiência esfincteriana
intrínseca estão indicadas as operações tipo "sling",
das quais temos utilizado 2 opções: alça com aponeurose
do reto abdominal ou cirurgia de TVT (tension free
vaginal tape), técnica minimamente invasiva, que utiliza
dispositivo especificamente fabricado para esse fim.
Além da DEI, as operações tipo sling também são opção
para casos de incontinência por hipermobilidade em
pacientes obesas ou com pouca elasticidade vaginal,
nas quais a operação de Burch pode estar dificultada.
A técnica de TVT apresenta vantagens importantes,
a saber: execução simples e uniforme, não permitindo,
praticamente, qualquer variação significativa, de
um cirurgião para outro; não tem incisões abdominais;
não há necessidade de sondagem vesical de demora;
tempo curto da operação e da internação. Esses fatores
têm contribuído para a difusão do método que, em nossa
prática, tem oferecido excelentes resultados. É importante
lembrar que tanto as operações com alça de reto abdominal
como as fitas TVT, exigem a realização de cistoscopia
per-operatória, para verificar a integridade vesical.
As injeções periuretrais têm resultado por tempo muito
curto e são dispendiosas. Sua indicação está restrita
a pacientes com deficiência intrínseca, com grandes
limitações clínicas para qualquer outra técnica.
Das causas de falha para o tratamento cirúrgico destacam-se
as doenças pulmonares obstrutivas, obesidade, atrofia
tecidual, diagnóstico incorreto da incontinência,
escolha inadequada da técnica empregada e a instabilidade
vesical.